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voluntário, com que Aleixo o esmagava, o ludibriava impunemente. Ah! era assim,
hein? Pois havia de lhas pagar hoje ou amanhã. A gente é como um copo d água:
vai-se enchendo, vai-se enchendo, até não poder mais!
Faiscavam-lhe as retinas como duas brasas, como dois fogachos, por trás da
névoa úmida das lágrimas; todo ele vibrava, todo ele tremia como um epiléptico:
vinham-lhe cóleras, ímpetos, aflições... Quase não se podia conter diante daquela
casa, que era como o túmulo mesmo das suas ilusões. Transfigurava-se,
enlouquecia de ódio, espumava de cólera, de raiva, de ciúme! O aspecto das
cousas, o mundo exterior, a gente que passava para o trabalho, tudo quanto seus
olhos viam naquela hora de amargura, o próprio sol, a própria luz torrencial do dia
causava-lhe um tédio imenso; arrancando-lhe blasfêmias da boca entreaberta num
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sorriso agoniado e convulso. Não tinha coragem de fitar, de demorar os olhos no
sobradinho: baixava-os logo gelado: Era ali mesmo, tal e qual!
Começou, de repente, a sentir uma zoada no ouvido, um rumor vago de
insetos, uma cousa desagradável, incômoda e amofinadora; tremiam-lhe as pernas;
ia-se-lhe faltando a respiração. Era um mal-estar, um nervoso, uma aflição, um
delírio, um vago desejo de matar, de assassinar, de ver sangue... Passou a mão nos
olhos, trêmulo, encostando-se à coluna de um gás; quase não podia ter-se em pé:
estava sem forças, o hospital enfraquecera-o, debilitara-o horrorosamente, o maldito
hospital . Nunca mais havia de lá, por os pés, nunca mais!
A porta do sobrado estava fechada; em cima a meia vidraça de uma janela
conservava-se aberta; nem parecia morar gente ali: uma imobilidade sepulcral,
desoladora!
Bom-Crioulo rodou nos calcanhares, atônito, sem consciência do meio em
que estava, o olhar perdido ao longe, na rua, e foi andando, andando, muito devagar
por ali acima.
De repente: Ah! a padaria! Já se não lembrava; era a mesma também, a
mesmíssima, com seu grande letreiro na fachada Padaria Lusitana, com suas três
portas, debaixo de uma sobrado, quase defronte da portuguesa. Vinha lá dos fundos
um cheiro bom de massa, um apetitoso cheiro de pão quente.
Enfiou pelo estabelecimento, e, sem reflexionar, dirigiu-se ao empregado, um
muito vivo, rapazola, que, pelos modos, parecia de além-mar.
O senhor sabe me dizer se ainda mora ali defronte, no sobradinho, uma
portuguesa?
D. Carolina?
Essa mesma: uma gorda, bonitona...
Mora, pois não! disse o outro com um quê de malícia nos olhos.
E um rapazinho, marinheiro, de olhos azuis...?
Também, Acordam tarde. Ultimamente a porta vive fechada. Costumam
sair juntos à noite...
Saem juntos?
Pois não! A mim me parece que o menino é bem espertinho...
Bom-Crioulo estremeceu. Ia saber tudo agora, pela boca do caixeiro: a
ocasião era a melhor porque o dono do estabelecimento andava fora.
O senhor não estará enganado? tornou ele muito curioso,
precipitadamente, numa voz quase humilde, o olhar grudado no rapaz.
E entrou a explicar, a dizer como era a portuguesa, como era o marinheiro:
Uma gorda, bonitona, muito vistosa, d olhos grandes, que alugava quartos...
Essa mesma, homem!
O outro não tinha barba, era meio criança ainda, olhos azuis, muito alvo,
bonitinho...
Exatamente, informou o caixeiro. Foram ao teatro, ontem, à Tomada da
Bastilha. Conheço muito D. Carolina. Dizem até que está amigada com o pequeno...
Quase as mesmas palavras do Herculano! A mesma história de mulher! Bom-
Crioulo ficou imóvel, calado, perdido nas suas idéias. Aleixo amigado com a
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portuguesa, com a D. Carolina! Era inacreditável, era um desaforo sem nome, um
desrespeito, uma falta de vergonha, um escândalo!
Está admirado? perguntou o rapaz fitando o negro, cujo olhar tinha agora
uma dolorosa, uma extraordinária, uma indizível expressão de melancolia e
surpresa. Não se admire, não, que é que o todos dizem...
E logo, interrompendo-se, com o braço estendido:
Olhe, nem de propósito: aí vem ele, o pequeno...
Aleixo ia saindo porta fora, tranqüilamente, apertado na sua roupa azul e
branca de marinheiro, a camisa decotada, a calça justa.
O negro teve um daqueles ímpetos medonhos, que o acometiam às vezes;
garganteou um oh! rouco, abafado, comprimido, e, ligeiro, furioso, perdido de
cólera, sem dar tempo a nada, precipitou-se, numa vertigem de seta, para a rua. Não
via nada, tresvariado, como se de repente lhe houvesse fugido a luz dos olhos e a
razão do cérebro. Precipitou-se, e, esbarrando com o grumete, fintou-o pelo braço.
Tremia numa crise formidável de desespero, os olhos congestionados, um
suor frio a porejar-lhe da testa negra e reluzente.
O pequeno estacou surpreendido:
Sou eu mesmo, rugiu Bom-Crioulo, sou eu mesmo! Pensavas que era só
meter-te com a portuguesa, hein? Olha para esta cara, olha como estou magro,
como estou acabado... Olha, olha!
E apertava bruscamente o outro, sacudindo-lhe como se o quisesse atirar no
chão.
Vê lá se me conheces, anda! Olha bem para esta cara!
O efebo debatia-se, pálido, aterrado:
Me largue! Não me provoque, senão eu grito!
Anda pr aí, grita, se és capaz! Grita, safado, sem-vergonha... mal-
agradecido!
Sua voz tomava uma inflexão voluptuosa e terrível ao mesmo tempo; a
palavra saía-lhe gaguejada, estuporada e trêmula.
Grita, anda!
O outro mudava de cores, recuava trôpego, a língua presa, quase a chorar,
numa aflição de culpado, o olhar azul submisso refletindo a imagem do negro:
Me largue, repetiu. Eu lhe peço: me largue!
Transeuntes olhavam-nos de banda e voltavam-se para os ver naquela
posição, rosto a rosto, juntinhos, agarrados misteriosamente. Porque Bom-Crioulo
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não falava alto, que todos ouvissem, não dava escândalo, não fazia alarme: sua voz
era um rugido cavernoso e histérico, um regougo abafado. longínquo e profundo.
Grita, anda, grita pela vaca da Carolina!
Me solte! continuou o efebo trêmulo, acovardado. Me largue!
Não te largo, não, coisinha ruim, não te largo, não! Bom-Crioulo, este que
aqui está, não é o que tu pensas...
Mas eu não fiz nada! Me solte, que é tarde!
Os olhos do negro tinham uma expressão feroz e amargurada, muito rubros,
cruzando-se, às vezes, num estrabismo nervoso de alucinado.
Um sujeito parou defronte, a olhá-los; vieram depois outras pessoas, outros
curiosos; um marinheiro da Capitania, um italiano carregado de flandres, um guarda
municipal, crianças, mulheres...
Houve logo um fecha-fecha, um tumulto, um alvoroço. Trilaram apitos; vozes
gritavam rolo! rolo! e a multidão crescia no meio da rua, procurando lugar,
empurrando, abrindo caminho, precipitando-se, formando um grande círculo de
gentes ao redor dos dois marinheiros, invisíveis agora.
Os bondes paravam. Senhoras vinham à janela, compondo os cabelos, numa
ânsia de novidade. Latiam cães. Um movimento cheio de rumores, uma balbúrdia!
Circulavam boatos aterradores, notícias vagas, incompletas. Inventavam-se histórias
de assassinato, de cabeça quebrada, de sangue. Cada olhar, cada fisionomia era
uma interrogação. Chegavam soldados, marinheiros, policiais. Fechavam-se portas
com estrondo.
Alguma cousa extraordinária tinha havido porque, de repente, o povo recuou,
abrindo passagem, num atropelo.
Abre! abre! diziam soldados erguendo o rifle.
De cima, das casa, mãos apontavam pra baixo.
E D. Carolina também chegara à janela com a vozeria, com o barulho, viu,
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